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A AUDIODESCRIÇÃO PARA CINEMA: UMA PROPOSTA DE PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA ACESSÍVEL PARA PESSOAS COM DE

  • Sara Mabel Ancelmo Benvenuto
  • 1 de ago. de 2015
  • 21 min de leitura

RESUMO: Quase todos os guias de audiodescrição (AD) afirmam que as inserções de AD não devem se sobrepor aos diálogos e algumas trilhas sonoras. Essa restrição limita a audiodescrição de elementos característicos do filme de forma relevante, como enquadramento, movimentos de câmera, efeitos de iluminação e aspectos da edição. Como resultado, as escolhas do audiodescritor são restringidas e, por esta razão, os elementos do cinema não são enfatizados. Dada a importância da descrição desses elementos para a pessoa com deficiência visual (PcDVs) apreciar o filme, este estudo, que é parte de minha dissertação de mestrado, tem como objetivo produzir um filme que leva em conta a acessibilidade para PcDVs desde a fase de pré-produção do filme. Quanto ao método utilizado, a pesquisa faz uso de pesquisa-ação, porque faz uma produção dirigida a uma comunidade específica, buscando construir e obter os resultados no decorrer da mesma, uma vez que não há como prevê-los antecipadamente. Nesta perspectiva, foi realizada uma adaptação do conto A Entrevista do escritor Rubem Fonseca. O filme de 8 minutos foi produzido com alunos de graduação da Universidade Estadual do Ceará na disciplina denominada tradução intersemiótica. O filme foi desenvolvido tendo em mente os parâmetros da audiodescrição, especificamente os parâmetros narratológicos propostos por Payá (2010). No entanto, o objetivo deste estudo é demonstrar a relevância de um filme que combina cinema e AD, a fim de sugerir formas diferentes de descrever recursos de filmes bem como outros elementos verbais (créditos iniciais e finais, logo filme, legendas e assim por diante) e não-verbais (personagens, elementos temporais e espaciais e ações) descritos por Jimenez-Hurtado (2010).

Palavras-chave: Tradução audiovisual; Audiodescrição; Acessibilidade; Pesquisa-ação; Realização fílmica.

ABSTRACT: Almost all audiodescription (AD) guides claim that AD insertions should not overlap dialogues and some sound tracks. This constraint limits the audiodescription of several significant film features, such as framing, camera movements and editing. As a result, the audiodescriptor's choices are restrained and, for this reason, film elements are not emphasized. Given the importance of the description of these elements for the blind to enjoy the film, this study, which is part of my MA dissertation, aims to produce a movie that takes into account the accessibility for blind people since the pre-production phase of filmmaking. As far as method is concerned, the research makes use of action research, because it makes a production directed to a specific community, seeking to build and get the results in the course of this research, once there is no way to predict them in advance. In this perspective, we performed an adaptation of the short story A entrevista by the Brazilian writer Rubem Fonseca. The 8 minute short film was produced with undergraduate students from the State University of Ceará in the discipline Intersemiotic Translation. The film was developed having audiodescription parameters in mind, specifically the narratological parameters proposed by Payá (2010). Nevertheless, the purpose is to demonstrate the relevance of a film that combines filmmaking and AD, in order to suggest different ways of describing film features as well as the other verbal (characters, temporal and spatial elements, and actions) non-verbal elements (initial and final credits, film logo, captions and so on) described by Jimenez-Hurtado (2010).

Keywords: Audiovisual translation; audiodescription; accessibility; action research; filmmaking.

Introdução

É inegável que a constante exposição aos meios tecnológicos na nossa época tem contribuído para um novo modo de conceber a realidade. As diversas formas de captação e reprodução de imagens como câmeras, computadores, softwares de criação de vídeos e sites tornam possível a reprodução e divulgação de produtos variados, trazendo, além de uma maior possibilidade e oportunidade de expressão, uma maior necessidade de público que assista, leia, escute, compreenda, comente e divulgue o que foi comunicado.

Segundo Payá (2007), mais de 94% da informação que recebem o homem e a mulher contemporâneos entra no cérebro pelos sentidos da visão e da audição, mais de 80% especificamente através da percepção visual. Sendo assim, a era digital impõe que textos multimodais alcancem o maior número de pessoas possível e que sejam, cada vez mais, acessíveis a todos aqueles que porventura os procurem.

Contudo, observa-se no cenário atual, que pessoas com deficiência visual ou baixa visão são automaticamente deixadas fora desse sistema cultural. Daí a necessidade do recurso da audiodescrição destas obras para inclur todas essas pessoas nesse contexto cultural.

De acordo com Araújo (2011), a AD é a técnica utilizada para tornar acessíveis para os cegos o cinema, o teatro, a TV, exposições de quadros e outras formas artísticas envolvendo o campo visual. Num filme, a AD é uma descrição adicional que narra a ação da cena, as expressões faciais, a linguagem corporal, os cenários, os figurinos, enfim, todos os elementos relevantes, verbais ou não-verbais). Geralmente, essa narração é inserida entre os diálogos e não interfere nos efeitos musicais e sonoros.

Apesar das ainda embrionárias pesquisas em audiodescrição (AD), vários trabalhos acadêmicos versam sobre o assunto, em especial aqueles em AD de filmes realizados por Jimenez-Hurtado (2007, 2010), Payá (2007, 2010) e, mais recentemente, Araújo e Braga (2011), os quais trouxeram importantes contribuições na busca de parâmetros que atendam satisfatoriamente às necessidades informacionais das pessoas com deficiência visual.

Vale ressaltar que essas contribuições serão de grande auxílio para este artigo uma vez que confrontam elementos típicos da produção do cinema e sua descrição. É neste aspecto, de forma imediata e especificamente, que o presente estudo almeja avançar, propondo uma forma de AD que revele mais nitidamente os aspectos audiovisuais, como a linguagem de câmera e efeitos de montagem.

Para o desenvolvimento deste estudo, o artigo se dividirá em sete partes, a saber: a restrição da AD, em que falo da problemática acerca das AD de filmes; a audiodescrição e o cinema, em que pontuo a fundamentação teórica tanto da AD quanto do cinema; a resignificação da AD, em que explano as diretrizes de criação da AD para o filme adaptado; a metodologia, em que explico a pesquisa-ação, que se subdivide em constituição do corpus, procedimento de análise, identificação do problema, planejamento da solução e, finalmente, implementação da solução e seu monitoramento; em seguida, temos a adaptação do conto “A Entrevista”, em que analiso as decisões do processo de adaptação do conto de Rubem Fonseca (2012), a audiodescrição do filme homônimo, em que exploro as escolhas do léxico da AD do filme, e por fim, as considerações finais deste estudo.

A restrição da AD

A intenção comunicativa da AD vai além de informar ao receptor o que está acontecendo de forma objetiva, ou seja, somente tratar sobre o que é captado apenas pela visão. Por isso, em uma AD que se limite apenas ao que pode ser percebido superficialmente, deixando de fora os elementos cinematográficos, como enquadramentos, pontos de vista e ritmo de montagem, corre-se o risco de ter uma tradução incompleta da obra, por não tornar evidente as estruturas típicas da linguagem do meio cinematográfico.

A AD não deve se sobrepor aos diálogos e a algumas trilhas sonoras do filme, considerando referido aspecto, cria-se uma restrição no tempo para audiodescrever. Tal fato pode ocasionar o risco de excluir do roteiro de AD elementos cinematográficos fundamentais, como enquadramentos, pontos de vista, movimentos de câmera, montagem entre outros.

Diferentemente do roteiro cinematográfico, o roteiro de AD de filmes pode priorizar composições de planos diferentes daquelas realizadas no primeiro. Também segundo Payá (2007), normalmente, os elementos de maior tamanho são descritos antes dos menores e os elementos móveis antes dos elementos estáticos. Dessa forma, uma descrição ordenada é estabelecida de acordo com o encadeamento das ações na cena, consideradas mais importantes para seu entendimento, deixando aos espectadores a livre reflexão acerca dela. É importante ressaltar que para a autora a composição do texto audiodescrito é subordinada tanto às necessidades do espectador quanto à plasticidade das imagens na obra cinematográfica. Com efeito, aliar essas duas necessidades em breves espaços de tempo é uma tarefa árdua para o audiodescritor, visto que o tempo e o espaço disponíveis para tais inserções também são grandes problemas fundamentais na tarefa de audiodescrever.

Dito isso, em um filme, temos normalmente a convivência de diversos aspectos como enquadramentos, movimentos de câmera, pontos de vista, personagens, diálogos, trilhas e vários outros elementos de natureza fílmica em constante dinamização. Durante a elaboração de um roteiro de AD, deparamo-nos com as escolhas típicas como o que audiodescrever e como fazê-lo de uma forma a melhor traduzir essa dinamização do audiovisual para o verbal, aproximando-se mais da semiose do cinema.

Primeiramente temos que ter em mente que não será possível nem viável audiodescrever tudo, principalmente se não tivermos tempo suficiente para isso, o que acontece na maioria dos filmes, uma vez que o público vidente também deve assistir ao filme confortavelmente. Vale ressaltar que a proposta da AD é de inclusão dos deficientes visuais (DVs) e não de exclusividade.

Por conseguinte, uma obra cinematográfica que sugira descrições mais próximas do contexto audiovisual e alie o processo de feitura da AD ao processo de realização do filme, pode desentravar a questão da limitação de espaço para a AD e, com isso, proporcionar ao audiodescritor um conforto maior para elaborar um texto mais consoante com os recursos audiovisuais dos filmes. Referida junção facilitaria enormemente o processo de AD, além de aproximar mais ainda as tarefas de roteirização para o cinema e para audiodescrição. Deste modo, assim como os videntes, os DVs seriam englobados como espectadores na obra audiovisual desde sua criação, fato que iria contribuir para uma completa inserção desses no âmbito audiovisual.

A audiodescrição e o cinema

Indubitavelmente, para uma audiodescrição satisfatória de uma obra audiovisual, isto é, sua tradução, é necessário conhecer efetivamente os aspectos intrínsecos de cada uma das partes, a fonte e o domínio. No presente caso, o processo de AD e o mundo cinematográfico.

De acordo com os trabalhos do grupo LEAD[2], o processo de AD se divide em quatro etapas: elaboração do script com a ajuda de um consultor com deficiência visual, produção do roteiro com as marcações de início e fim das locuções, escolha do melhor locutor para determinada obra e, por fim, a gravação da AD no filme.

Embora esse procedimento descrito brevemente pareça simples, sabemos que envolve um leque de árduas escolhas no que diz respeito à elaboração do roteiro de AD e também na locução de vozes durante a gravação, visto que as modulações de voz também produzem significado e podem resgatar um ou outro aspecto da linguagem de câmera, efeito de montagem ou atmosfera do filme.

Assim, para entender melhor as priorizações na AD utilizando a linguagem do cinema, devemos ter em mente primeiramente a noção de imagens e sons no mundo audiovisual, ou seja, temos que entender melhor os elementos de um filme e sua interação com os espectadores.

De acordo com Deleuze (1989), o cinema não é nem língua nem linguagem, mas uma semiótica. Para ele, “a língua só existe em reação a uma matéria não-linguistica que ela transforma” (DELEUZE 1989, p.29). Diferentemente de Metz (1977) que acredita que o cinema produz um discurso por meio de operações paradigmáticas e sintagmáticas assim como a linguagem, Deleuze rejeita os conceitos saussurianos de Metz em favor de uma parole em constante mudança, aproximando-se, assim, da teoria de signos de Peirce. Para Deleuze (1989), o cinema é percebido ainda como um instrumento filosófico, um gerador de conceitos e um produtor de textos que traduz o pensamento em termos audiovisuais, não por meio da linguagem, mas em blocos de movimentos e duração. Fernão Ramos (2009), por sua vez, entende que o cinema apresenta um modo característico de significar com imagens em movimento, sons e falas, organizadas em partes contínuas de duração e na encenação ou mise en scène entre seus personagens e suas ações.

O cinema estabelece relações com outros campos disciplinares, em particular com a narratologia, ostenta ainda a significação extra representativa de um dado objeto e das noções narrativas de personagem, espaço e enunciação, criando instrumentos específicos para narrar uma história. Quanto a esses instrumentos, também chamados de “objetos cinematográficos” por Aumont (1995), podemos dividi-los em três níveis: no nível do plano, no nível da sequência e no nível do filme (narratologia). No primeiro nível, temos o plano como a parte situada entre dois pontos de corte do filme. Costuma-se definir o plano como qualquer pedaço de película que desfila de modo ininterrupto na câmera entre o acionamento do motor e sua parada (Aumont 1995, p. 40). O plano abrange parâmetros como dimensões do quadro, composição do quadro (encenação, cores e iluminação), ponto de vista, duração, ritmo e relação com as outras imagens, além de envolver traços de enquadramento, a maneira em que vemos delimitado o espaço de representação. Como exemplos de enquadramento, temos os ângulos evidenciados pela câmera, a profundidade do quadro e os movimentos percorridos pela câmera durante a filmagem.

Em seguida, no nível da sequência, temos a combinação de planos que compõem uma unidade narrativa para dar sentido às imagens. A montagem aqui é princípio norteador de toda a fotogenia e significação do filme. Segundo Aumont (1994), ela é definida como a seleção, agrupamento e junção de planos a fim de dar totalidade ao filme. Além de sua função central de sentido, resgatada principalmente pelo uso de raccords, mudança invisível de planos que dá a sensação de falta de corte, a montagem também pode encarregar-se de produzir determinados efeitos no filme. Planos curtos com cortes abruptos assim como planos longos com cortes suaves podem trazer a um filme implicações e leituras bem diferentes quanto a seu estilo e compreensão do todo.

Por fim, temos o filme. Nesse nível, temos as combinações de sequências a fim de articulá-las da forma desejada para criar um todo coerente. Nesse estágio, elas são passíveis de serem lidas através dos múltiplos conhecimentos previamente adquiridos. No entanto, nesse nível também entram os elementos narrativos típicos para contar uma história não só do cinema, mas do romance, teatro ou televisão, como o mundo diegético, personagens, espaço, temporalidade e ponto de vista.

Assim sendo, ao enveredar em uma criação cinematográfica é necessário estar ciente dos pressupostos técnicos, culturais e estéticos envolvidos nessa arte e dos poderes que ela exerce sobre seus espectadores. Dito isso, é ainda mais importante o trabalho daquele que se propõe a analisar e traduzir esse sistema integrador desses três níveis de elementos, e criar parâmetros que atendam às deficiências tanto culturais quanto técnicas dos deficientes visuais.

Jiménez Hurtado (2007), através de uma análise de um corpus de 325 filmes audiodescritos em quatro línguas de trabalho (alemão, francês, inglês e espanhol), apresentou parâmetros de AD’s para cinema utilizados na Europa. Em suma, sua pesquisa identificou a existência de quatro tipos de eventos a serem audiodescritos: a troca de cena, o foco de atenção dos personagens, a relação entre comunicação não verbal e a troca de situação e a predominância dos tempos verbais, Pretérito Perfeito e Presente do Indicativo (3ª pessoa do singular).

Sob a perspectiva dos aspectos cinematográficos, Payá (2007) afirma que o processo de AD se dá em duas etapas: da linguagem visual e sonora (imagens e sons) para a linguagem verbal (palavras) e da linguagem verbal para a linguagem oral (locução). A linguagem do roteiro de AD se mostra muito mais concreta que a linguagem cinematográfica, já que a mise-en-scène audiodescrita demanda a escolha de um vocabulário adequado para designar os objetos de maneira única e sólida, assim como para caracterizar os aspectos, atitudes, gestos e ações dos personagens. Vale lembrar também que as AD’s supõem decisões estéticas que implicam sempre em efeitos de sentido, nem sempre buscados, mas que estão presentes nas imagens, concedendo diferentes níveis de leitura.

Ainda segundo a autora, como a tarefa de audiodescrever deve ser considerada individual e exclusiva de cada obra, podemos observar, então, que no processo de tradução da linguagem da câmera para a linguagem verbal, o roteiro cinematográfico pode ser de valioso apoio para abranger o procedimento de seleção de informação visual, sendo ele o melhor texto paralelo para ajudar na tradução de imagens em palavras.

A ressignificação da AD

Em seu estudo mais recente, Payá (2010) diz que para entendermos melhor o percurso do audiodescritor ao traduzir um filme, devemos percorrer o caminho que une os dois textos, filme e filme audiodescrito. Desse modo, “será possível analisar o sentido da linguagem de câmera assim como a tradução da informação visual em um discurso verbal organizado e especializado” (PAYÁ 2010, p. 113-114).

Através de um programa de etiquetação chamado Taggetti, que serve tanto para sistematizar e compreender o texto audiodescrito quanto para classificar e comparar os procedimentos textuais que traduzem os recursos imagéticos de um filme, a autora elenca e convenciona a etiquetação dos elementos cinematográficos, suas funções dentro da obra e sua correspondente tradução para AD e repercussões, propondo um novo olhar e direcionamento da AD de filme bem mais de acordo com o contexto audiovisual.

Para essa categorização, ela divide os níveis de leitura da imagem em encenação ou mise-en-scène, enquadramento e sequências; e os confronta com os níveis de escrita do texto verbal (nível lexical, nível morfossintático, nível discursivo). A divisão de imagens é similar à mencionada anteriormente no nível do plano, nível da sequência e nível do filme. A diferença entre essas definições é que Payá (2010) fraciona o nível do plano em dois, a encenação e o enquadramento, e reúne na sua categoria de sequência o nível da sequência e do filme.

A autora cita como um exemplo do resgate das escolhas das imagens nas escolhas das palavras traduzidas, o efeito da montagem utilizado no filme As Horas, de Stephen Daldry, cuja AD foi feita por José Luis Echevarría. No filme as três histórias das personagens se entrelaçam e, a fim de mostrar isso imageticamente, o diretor optou por usar a montagem paralela, em que ela apresenta uma cena de cada personagem praticando quase a mesma ação ou resgatando algum leitmotiv. Sob o mesmo ponto de vista, a AD conseguiu manter esse efeito de paralelismo no seu texto através da repetição do verbo despertar na sua construção sintática: [...] Desperta a mulher que dormia em Los Angeles em 1951. Desperta Virginia em Richmond em 1923. Desperta a mulher madura em Nova Iorque em 2001 [...]

Dessa forma, Payá comprova que a escolha do conteúdo discursivo de uma AD pode e deve ressignificar os efeitos dramáticos e narrativos dos recursos e procedimentos técnicos de uma obra audiovisual. Com isso, traz uma nova diretriz para a AD de filmes.

Metodologia

Este trabalho é definido como uma pesquisa-ação que realizou uma obra cinematográfica acessível especificamente destinada às pessoas com deficiência visual. Este é o segundo trabalho de mestrado a propor a feitura de um curta-metragem. O primeiro foi proposto por Cordeiro (2011) que apresentou a realização do curta A Vida De Pedro adaptado da canção Dirty Boulevard, de Lou Reed. Embora a proposta de realização de filmes seja semelhante, o trabalho de Cordeiro se distancia deste por se apoiar em uma descrição qualitativa etnográfica do processo de análise da pesquisa.

O tipo da pesquisa nesse estudo foi escolhido com a finalidade de se realizar uma produção direcionada a uma comunidade específica, não havendo como prever quais os resultados obtidos. Estes foram, portanto, construídos ao longo do percurso da pesquisa.

Segundo Tripp (2005), a pesquisa-ação é uma maneira de investigação e ação que faz uso de técnicas de pesquisa consagradas para informar a ação decidida para melhorar a prática em determinado contexto social. Sendo assim, ela requer ação em etapas tanto na área da prática quanto da pesquisa, por isso apresentou características da prática rotineira como também da pesquisa científica.

Constituição do corpus

Este estudo não se propõe somente a sugerir novas perspectivas na AD de filmes, como também propõe um trabalho de adaptação e realização fílmica. Diante da proposta adotada, foi realizada uma adaptação do conto A Entrevista do escritor Rubem Fonseca. O curta-metragem de 8 minutos foi produzido com alunos de graduação da Universidade Estadual do Ceará, na disciplina de Tradução Intersemiótica. O referido conto foi escolhido por ter uma narrativa simples, poucos personagens e um único espaço diegético, fatores essenciais para uma adaptação feita por uma equipe amadora.

Com o intuito de melhor compreender as escolhas da adaptação fílmica e audiodescritivas, faz-se necessário uma explanação geral da narrativa de Rubem Fonseca.

O conto traz um diálogo direto e simples entre um homem e uma mulher, que ocorre aparentemente em um quarto mal iluminado de hotel. Ela entra no local descrito onde ele já se encontra. O homem a incentiva a contar sua história de vida. Ela então conta que viveu quatro anos felizes com seu marido, até os dois se desentenderem em razão de um incidente ocorrido com outra mulher num bar. Tal fato ocasionou uma grave briga entre o casal e ela foi agredida pelo marido e por isso perdeu o filho que esperava dele. Conta ainda que seu pai e seus irmãos bateram nele para protegê-la e eles nunca mais se falaram depois do ocorrido. Eventualmente, a mulher pergunta se pode acender a luz, ao passo que o homem pergunta se ela não tem medo que o marido a encontre. Ela responde "Já tive, agora não tenho mais... Vamos, que é que você está esperando?" e o conto acaba.

Em termos de análise, podemos inferir que o homem que recebeu a mulher seria, na verdade, o ex-marido dela. Após a briga, fugiu da cidade, pois corria risco de vida ali, se estabeleceu no Rio de Janeiro e buscou encontrá-la depois de saber que ela também estava morando no Rio e que, provavelmente, fazia programas para sobreviver.

Sabendo disso, ele planeja uma armadilha para um reencontro com ela. Ele a chama para um programa em um local que não se sabe onde é, pode ser sua casa ou um quarto de hotel, só se sabe que é escuro e propício para que ela não o reconheça e fuja imediatamente.

Enquanto a conversa entre os dois segue, quase como numa entrevista, ele dá indícios de que sabe quem ela é e conhece a história que ela conta, confirmando, assim a hipótese de ele ser realmente o ex-marido. Ao dizer que são precisamente mais de dois mil quilômetros de viagem do lugar de onde ela veio para o Rio, ele mostra que sabe exatamente qual a origem dela.

Outro indício relevante é o fato de perguntar se era um menino a criança perdida por ela após a briga. Com esse questionamento, fica evidente que ele não sabia qual era o sexo da criança, já que ela o perdeu possivelmente no início da gestação e ele não teve mais contato algum com ela ou mais alguém da cidade deles.

No entanto, não podemos saber ao certo quais as motivações para ele trazê-la ali. Decerto podemos pensar, pela alusão ao sombrio mostrado pelo local mal iluminado, em algum tipo de ameaça ou até mesmo um assassinato. Esta última hipótese é considerada porque ele não é retratado no conto como um homem de caráter e princípios confiáveis, em razão da briga ocorrida entre eles fato que culminou na morte do próprio filho.

Ainda assim, há a paixão inegável e latente entre os dois. Ela, em menor escala, se utiliza do mesmo recurso de violência, afinal agrediu uma mulher fisicamente ao ver a possibilidade de perder seu marido para outra. Por isso, nem mesmo pode ser descartada a alternativa deles voltarem a ficar juntos.

Procedimentos de análise

Como dito anteriormente, a pesquisa-ação é norteada por etapas de desenvolvimento, já que estão diretamente atreladas à interação entre pesquisador e participantes e é a partir dela que podemos observar os resultados do estudo. Essas etapas são a identificação do problema, o planejamento de uma solução para o problema, a implementação da solução, o seu monitoramento e, por fim, a avaliação do seu resultado. De todos esses itens, em razão do tempo hábil de estudo, essa pesquisa englobará apenas os quatro primeiros momentos de desenvolvimento. A avaliação dos resultados ficará para um futuro seguimento dessa investigação.

A identificação do problema

Primeiramente, foi escolhido um grupo da comunidade, para dar bases práticas à pesquisa. Então, o grupo de 11 alunos da graduação foi escolhido. Após a formação do grupo, foi dado seguimento aos encontros semanais da disciplina de tradução intersemiótica para identificarmos os problemas em relação à AD de filmes e ao processo de adaptação fílmica. Nessa fase, lemos e discutimos a bibliografia referente tanto à teoria do cinema quanto à da AD, organizamos seminários apresentados pelos alunos a fim de inseri-los melhor no contexto teórico, afastando-se do caráter ordinário da pesquisa rotineira e aproximando-a da pesquisa científica, além de ter sido um dos métodos de avaliação da disciplina.

Um exemplo contundente do que se observou como problema, a partir das reflexões em sala de aula, foi a falta de audiodescrições que revelassem os recursos típicos do discurso audiovisual, ocasionada talvez pelo desconhecimento por parte dos audiodescritores da leitura cinematográfica e pela falta de tempo para uma descrição que englobasse satisfatoriamente esses recursos.

O planejamento da solução

Nessa fase, foi dado início ao planejamento das soluções aos problemas identificados na etapa anterior. Aqui foram feitas hipóteses fundamentadas tanto na teoria estudada quanto na prática debatida nos encontros prévios.

Para tal, precisávamos encontrar uma forma de solucionar o problema da falta de descrições cinematograficamente marcadas e da falta de tempo para descrever confortavelmente os elementos audiovisuais. Pensando nisso, decidimos criar um roteiro adaptado do conto de Rubem Fonseca, para filmá-lo de acordo com as teorias de adaptação estudadas para que, ao finalizá-lo, pudéssemos elaborar e inserir nele a AD também de acordo com os parâmetros de AD observados nas leituras sobre o assunto.

Desse modo, teríamos um poderoso e pertinente instrumento de controle de manutenção de muitos dos motifs do filme na AD, traçando, com isso, importantes diretrizes na orientação da pesquisa e suas interpretações em ambas as áreas, adaptação fílmica e audiodescrição, a fim de serem seguidas na próxima etapa.

A implementação da solução e seu monitoramento

Após o estabelecimento dos problemas na AD de filmes e de diretrizes para solucioná-los, veio a fase de agir para implantar a melhora na sua prática. Nessa etapa houve a implementação da solução para os problemas evidenciados bem como seu monitoramento.

Diante disso, dividimos o grupo em uma equipe de cinema com diretor, roteirista, atores, produtores, figurinistas entre outros; e iniciamos as etapas de pré-produção e produção do filme.

Em primeiro lugar, deu-se início à decupagem do roteiro, em outra palavras, a visualização em planos das ações do roteiro. Em seguida, foram selecionados, dentre o grupo, os atores e a definição das locações. Após isso, começamos os ensaios com os atores e listamos todos os materiais necessários para a produção da filmagem como móveis, abajur, arma, cigarro etc. Logo em seguida, finalmente, realizamos a filmagem, que aconteceu em dois dias e foi monitorada através do registro em vídeo dos bastidores das gravações.

Passadas as fases de pré-produção e produção, seguiu-se a pós-produção, ou melhor, a finalização do curta, que abrangeu a montagem das cenas filmadas, a inserção da trilha e efeitos sonoros e, paralelamente, a elaboração e gravação da AD.

Como exemplo de uma ação de melhoria realizada nessa prática foi a criação da AD no momento de edição do filme, fato que não foi feito em nenhuma produção contemporânea do meu conhecimento.

A adaptação de A entrevista

Ao pensar numa proposta de adaptação fílmica do conto A entrevista, levamos todos esses aspectos em substancial consideração para fazer as melhores escolhas no que se refere à linguagem cinematográfica. Todavia, vale observar que deixaremos de lado a abordagem moral da fidelidade nas adaptações audiovisuais, já que, segundo Stam (2000), nem os escritores tem às vezes certeza das suas mais profundas intenções. Como, então, os cineastas poderíamos ser fiéis a elas? Propusemos determinada adaptação não tanto a partir do texto fonte, o conto, mas sim a partir das conjecturas formuladas com a sua leitura, aliada às características essência do meio de expressão a ser adaptado, o meio cinematográfico.

Então, para a construção do roteiro adaptado do conto, resolvemos quais seriam os personagens, os símbolos e o diálogo a serem mantidos, retirados ou até mesmo adicionados ao roteiro do filme.

Dessa forma, foi sugerido pela roteirista Greyce Oliveira[1] e aceito por todos, uma mudança na perspectiva da história, sendo assim, ao invés do personagem masculino preparar a armadilha, a mulher faria isso. A entrevista giraria em torno dele que se veria encurralado. Esse recurso foi escolhido porque, no cinema, através da ideia de aproximação do espectador com a história, um enredo de vingança faria mais sentindo vindo dela, a grande protagonista e que foi a maior prejudicada com o incidente entre eles, do que dele, o vilão sombriamente galante.

Também pensamos em adicionar o cigarro à personagem dela, pois marcaria o nervosismo da espera por ele e levaria a crer que a vida dela estaria entregue a vícios e paixões destruidoras. Simbolizando, com isso, os diferentes cenários de escolha da personagem: o de matá-lo e vingar-se dele ou o de perdoá-lo e voltar para ele, mesmo que isso viesse a degenerá-la lentamente.

Outros símbolos dos possíveis finais são encontrados na cena final da gaveta. Nessa cena, após ele já tê-la reconhecido, ela abre a gaveta e dentro dela vemos, nós e ele, uma arma, preservativos e dinheiro. O dinheiro seria para pagá-lo, pois no filme ele seria entregador de drogas, vulgo ‘avião’. A arma seria, provavelmente, para assassiná-lo, porém os preservativos fazem alusão à eventual mudança de motivação dela.

Em seguida, partimos para a montagem desses planos. A montagem é o dispositivo mais recorrente quando falamos em transformar as imagens em cinema, pois possibilita a produção de sentido mais amplo das sequências de planos e marca os estágios genéricos de uma determinada obra como apresentação dos personagens, conflito e resolução. Por isso, é um dos últimos passos na realização cinematográfica. Nesse momento também podemos pensar no encadeamento das cenas por sua função e efeito na narrativa, inserir trilhas sonoras, e no caso deste estudo, será também onde faremos a intervenção da AD.

Assim, os planos filmados foram montados um a um, de forma simples e direta como no conto de Rubem Fonseca, demarcando principalmente os enquadres opostos dos atores para fazer menção à estrutura de jogo interlocutório entres os personagens.

A Audiodescrição de A entrevista

Sob o mesmo ponto de vista da ressignificação da AD em escolhas lexicais categorizadas com base nos elementos fílmicos proposto por Payá (2010), a AD do filme teve como base e propósito traduzir os símbolos e os recursos cinematográficos usados na adaptação fílmica. Para isso, traçamos um esboço de como os planos seriam descritos e quais palavras dariam destaque a determinado aspecto fílmico. De acordo com Payá, como todos os planos são estáticos, requerem um uso maior de descrição, seja do ambiente, figurinos ou expressões faciais.

Após a escolha do léxico da AD, estudamos onde pontuar as descrições no decorrer do filme sem que estas se sobrepusessem a algum aspecto essencial ao filme como diálogo, trilha ou mesmo uma pausa dramática.

Como essa elaboração da AD foi feita em conjunto com a edição do filme, ficou mais simples identificar onde inserir a AD sem que esta se sobrepusesse a alguma característica importante do filme.

Considerações finais

Ao conhecer bem os recursos cinematográficos, as diretrizes de AD, principalmente aquelas propostas na etiquetação da narrativa imagética de Payá (2010), e ao construir o roteiro de AD conjuntamente com a realização fílmica, podemos assumir que temos um resultado de síntese bastante relevante e significativo nas descrições usadas para audiodescrever filmes, assim como ampliamos o número de inserções da AD por ter maior controle nos intervalos de tempos e espaço do filme.

Além do mais, comprovamos ser viável a presença do audiodescritor no processo de realização fílmica, sendo um dos integrantes da equipe. Desse modo, ele saberia, a partir das reflexões proporcionadas nos encontros da equipe, todos os elementos-chave e motivações do tema do filme como símbolos, enquadramentos, fotografia, figurino, efeitos de montagem e trilhas entre outros, e pontuaria-os resignificadamente na AD.

Contudo, ainda é necessário uma futura pesquisa com a comunidade de pessoas com deficiência visual para testar a validade deste modelo de prática contígua entre AD e realização fílmica.

De toda forma, podemos inferir do trabalho que é possível utilizar na AD um texto verbal que corresponda aos três níveis de leitura do texto audiovisual, encenação ou mise-en-scène, o enquadramento e sequências, proporcionando, dessa forma, um bom resgate dos símbolos imagéticos típicos do cinema.

Referências

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